O cervo avançava no terreno o mais rapidamente que as suas patas lhe permitiam. Sabia que era importante chegar ao seu destino o mais rapidamente possivel mas não era fácil faze-lo pelo meio daquela densa vegetação.
"-Bolas" bradou irritado."-porque tinha aquele sítio de ser tão longe?"perguntava de si para si,pensando onde teria a cabeça quando ajudou a escolher o local para colocar a estação núclear que, no fundo era o que mantinha o seu mundo vivo.
De facto, aos olhos incautos, Kranbak era um mundo de verde exuberante onde qualquer pessoa se sentiria bem....mas com o passar dos anos e sem controlo aquele mundo tornara-se irrespiravel até para os animais que ali viviam quanto mais para eles...
Estes e outros pensamentos passavam vezes sem conta pela cabeça enquanto galgava o terreno bravio e dificil. Foi facilmente arrancado à corrente dos seus pensamentos e puxado de volta à realidade por uma dor lancinante no flanco esquerdo que o fez aninhar. Cambaleante, decidiu então abrandar e verificar aquilo que lhe trouxe tão grande agonia.
À medida que o chão o recebia numa cama de folhas uma transformação ocorria. Em lugar das altas e finas patas, apareciam agora umas fortes e vigorosas pernas onde se notava uma grande fenda por onde brotava um liquido carmesim. O sangue brotava com profusidade enquanto um espinho denunciava o porquê de tal reacção. Em breve todo o corpo do animal desaparecera e dera lugar a uma figura humana que agonizaa agora de dor. Da sua testa caíam grossas gotas de suor e o seu semblante mostrava estar numa situação desesperada.
Conseguia já ver a nuvem de nitrogenio rumando à solta pelo ambiente. Isso não augurava nada de bom. Significava apenas uma coisa. Tinha de agir rápido. Tinha de ser certeiro ou milhares sofreriam com as consequencias. Mas ali estava ele. Indefeso e sem tempo. Com um esforço crescente, arrastou-se pela mata. Grossos pingos de suor denunciavam o seu esforço. Estava fraco...e sabia-o. Sentia-se impotente mas algo lhe dizia para continuar. O seu senso de dever fazia-o avançar mesmo sabendo que não se sentia em condições para tal.
Rodar a cheve foi um esforço herculeo. Fazer girar o manípulo foi de loucos e o tempo urgia. Fumo intenso denunciava o mau estado da máquina gigantesca que mantinha aquele mundo em condições habitáveis.De forças exauridas, só pedia à Deusa-Mãe que o auxiliasse sem saber que esta tinha, no entanto, outros planos para ele. De repente, e já sem forças, caíu inanimado pensando ter o seu dever cumprido sem notar que o mesmo fumo que saía das instalações o adormeciam lentamente. Não chegou a sentir o raio que entretanto o atingiu desintegrando-o por completo,
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A reunião
Steppen, o lobo foi o primeiro dos irmãos a chegar. Com uma passada lenta e resoluta sabia para onde se dirigia como se uma consciência o guiasse até ao seu destino. As suas pegadas marcadas na tundra gelada do árctico davam uma perfeita ideia do caminho que tinha percorrido até àquele local. A sua pose altiva dava-lhe um ar majestoso. No local marcado, esperou alheio ao frio que se fazia sentir. Já sentado, afagou o pêlo com o focinho. Lambeu assim as feridas causadas pelo gelo daquela terra inóspita. Ao fim de algum tempo decidiu como que impaciente, dar um sinal da sua presença. O uivo foi longo e forte. Sentia-se vitorioso por ter sido o primeiro a chegar e dessa maneira demonstrava-o. Ensinado a competir não concebia outra maneira de ser. Para ele tudo era uma questão de ganhar ou perder. Ele havia sido o vencedor. Não demorou muito porém e outras pegadas se juntaram às suas. O tigre branco mostrava ser menos extravagante, mas a sua presença não era menos notada. Com os seus enigmáticos olhos parecia querer hipnotizar o outro animal. Podia ser que assim pudesse ter um pouco de paz. Um roçagar de penas ouviu-se no ar juntamente com um grasnar incomodativo. O corvo chegara trazendo a sensação odiosa de que algo iria correr mal. Um momento de tensão instalou-se entre os presentes mas foi quebrado com uma nova chegada. A águia vinha com a sua costumeira velocidade e apurada visão e por pouco, não falhou o felino tal a velocidade com que se aproximou dos presentes. Se o tigre não tivesse sido rápido a desviar-se da ave de rapina, teria sido magoado pelas suas garras afiadas. Steppen sentia-se agora um pouco nervoso. Lembrava-se do que estava ali a fazer mas conhecer pessoas novas enervavam-no. Sabia que naquele ritual secreto e sagrado as coisas funcionavam mesmo assim mas isso não lhe trazia consolo. Conhecer gente nova era um drama para ele apesar da sua aparente auto-confiança. Pelo menos conhecia alguns. Já lhe bastava para consolação. Dentro em pouco os restantes membros do grupo começaram a chegar. A coruja branca chegou silenciosa e expectante indo-se acocorar junto da majestosa figura da águia que entretanto se prostrara junto do círculo marcado no chão. Faltavam apenas dois companheiros e já se começavam a impacientar quando ouviram o arrastar das pesadas patas do urso polar. Apesar do seu porte enorme, parecia ser o mais dócil de todas as criaturas presentes. A aurora boreal dava sinais da sua presença lançando um aviso a todos os presentes quando o ultimo membro do grupo aparecia. Na elegância das suas patas altas e na majestade dos seus chifres, o alce dava mostras de não se importar pela espera que impôs aos seus companheiros. O tigre olhou para cima de soslaio e começou a rosnar mostrando a sua insatisfação. Mostrando-se alheio a estas demonstrações de desalento, o cervo olhou para trás como que dizendo: “-Sigam-me”. Aparentemente ainda não haviam chegado ao local onde tudo se iria desenrolar. Ao fim de algum tempo e muito nervosismo depois, o Alce parou encenando uma coreografia que envolvia as suas patas bem como a cabeça e que levava os seus chifres a baloiçar perigosamente para um lado e para o outro. Como que por magia, uma caverna apareceu até onde há poucos momentos nada existia. Olhares incrédulos e estupefactos enchiam a paisagem. Naquele lugar alheado do resto do mundo começava já a haver burburinho e barulho onde absoluto silêncio era primordial. Este era um ritual sagrado. O ritual do equinócio da Primavera. Mas com uma presença muito especial. A Deusa Mãe, a Lua decidira aparecer em todo o seu esplendor. E nada podia correr mal. Afinal era uma celebração que acontecia apenas de quarenta em quarenta anos. Ciente disso, o alce levantou o focinho como que a ordenar ordem entre os presentes. De repente, vindo do nada, um brilho inundou a caverna escura e gotejante onde os presentes se haviam reunido. À medida que a radiância descia sobre os presentes, transformações ocorriam mas nenhum dos presentes pareceu surpresos antes desejosos que elas acontecessem. O lobo era agora um homem de meia-idade que se encontrava aninhado com um joelho no chão e o outro ao nível da cintura ao mesmo tempo que fitava o chão. O tigre branco e o urso polar já transformados em indivíduos levantavam-se preguiçosamente do chão frio onde estiveram aninhados. Olhar para um e para outro era como olhar num espelho tais eram as semelhanças entre eles. Entretanto, os restantes membros do grupo mantinham-se reunidos num semi-circulo. A coruja transformava-se agora numa mulher lindíssima de olhos enormes que pareciam abarcar o grupo com um olhar enigmático. Parecia mais uma espectadora atenta do que um interveniente naquela manhã sem brilho. O corvo transformara-se numa mulher alta com os cabelos cor azeviche. Os olhos traziam um tom carregado de negro o que, aliado a uma pele alva e gélida como a manhã, lhe dava um ar ainda mais sombrio. Por seu turno, a águia tinha agora um cabelo cor de fogo que parecia querer rivalizar com os raios da manhã que entretanto despontava. Os seus olhos eram rasgados e o seu nariz adunco dava-lhe um ar ameaçador mesmo na sua forma humana. Ambas as figuras não escondiam a inquietação e mostravam-se irrequietas. Não gostavam de estar ali. Todos olharam para a entrada da caverna onde agora se encontrava o líder do grupo. O alce transformara-se num jovem alto que agora se encontrava à entrada do local onde tão estranho grupo se reunira. Com autoridade na voz e contrastando com o cansaço evidente na sua maneira de agir, sussurrou: “- Pergunto-me quando tudo isto acabará. Gostaria que todos nós tivéssemos um amanhecer como esta manhã. Calma e sem problemas. Gostava sinceramente que isto terminasse e no entanto, sei que tal não é possível.” De repente virou-se para dentro da caverna e continuou encarando já o resto do grupo e continuou o seu monólogo: “-O destino juntou-nos há já muitas luas mesmo sem o sabermos. Aqui efectuamos este ritual ao mesmo tempo que renovamos os nossos votos de obediência à deusa.” “- Assim foi requerido pelo nosso pai e devemos obedecer.” De facto, todos eles representavam as grandes nações da Terra. Embora filhos do mesmo pai tinham todas origens diferentes mas sempre foram educados por suas mães de modo a poderem enfrentar aquele momento. Todos eles haviam acedido a viver na forma de um animal à escolha de modo a poderem agir de acordo com os seus últimos desejos. Desconhecidos até àquele momento, ainda assim o elo paternal fazia-os sentir-se à vontade. Sabiam o que era requerido deles e por isso haviam deixado para trás as suas mães, os seus ódios de estimação, os seus gostos e desgostos por um bem maior e agora que aquela fase estava para terminar sentiam-se estranhos. O jovem alto retirou então do interior da gruta um pedaço de tecido muito fino. Levantando-o no ar, iniciou as palavras usuais ao invocar os poderes dos deuses: “ -Poderosos do Leste, Poderes do Vento invocamos a Vossa presença para que possais abençoar esta cerimónia e assim testemunhar a nossa devoção”. De seguida passou o pano por todos os presentes que ao senti-lo por entre os dedos iam fazendo com que este se tingisse de vermelho carmesim. A finíssima seda era agora segura por todos. O líder continuava assim a invocar os poderes dos elementos. O fogo eterno juntava-se à cerimónia com a bênção dos Poderes do Sul, enquanto as águas imparáveis eram uma oferenda dos Senhores do Oeste. Os Poderes do Norte por sua vez ofereciam a Terra Eterna. O Véu parecia agora ter uma cor que sempre fora sua. Levantaram-no acima do altar, penduraram-no em dois suportes e começaram a golpeá-lo. De repente grossos pingos de um líquido vermelho sangue brotavam daquele que parecia ser um inofensivo lenço. Alguns pingos evaporavam-se, outros caiam por terra transformando-se em pó, outros ainda corriam como o rio para o mar a contrastar com os que ardiam como chamas do mais puro fogo. Mais uma vez, Rudy, o líder do grupo, falou dizendo: “- Esta é a combinação da essência dos nossos poderes que agora partilhamos com o universo para que as pessoas possam uma vez mais voltar à adoração da verdadeira Deusa, a Terra. Que esta oferenda possa significar um retorno à verdadeira adoração e respeito que a Deusa merece de todos.” O cheiro de incenso apurava os sentidos de cada um deles, e todos se achavam reverentemente ajoelhados e a oferecer as suas oblações. De repente e sem se fazer esperar, Sherryl, a moça que havia tomado a forma de corvo começou a contorcer-se violentamente. Todos esperavam este momento que significava o clímax do ritual. Era a forma da Deusa escolher o seu representante para a estação que se avizinhava. A rapariga sentiu-se indefesa quando foi levantada num pequeno tufão que a elevou até acima do altar e a fez gritar na sua mente. Nunca saberia se os outros presentes a ouviram. Súbita e rapidamente, ela transformou-se de novo num corvo, desta vez sem controlo para no segundo seguinte, ter a sua essência sugada pelo pedaço de tecido. Desaparecera. Ted, o urso, levou as mãos à boca com uma expressão de surpresa. Para ele, aquele ritual era uma estreia assim como para alguns dos outros disso tinha a certeza. Rudy olhou de soslaio para Ted e sorriu levemente colocando a mão por cima do ombro do seu companheiro. Sabia o que ele estava a pensar pois um dia, séculos antes, sentira o mesmo. Pensou como as reacções das pessoas são iguais diante de situações extremas. Então, tão rápido como acontecera o desaparecimento de Sherryl, um fogo abrasador tomou conta da sala e pareceu retirar da Terra um volume em estado larvar. Estava fumegante e parecia querer quebrar o que começou a acontecer segundos após uma tromba de água ter arrefecido o invólucro que aparecera de repente. Ninguém quis acreditar no que viram a sair de dentro daquele casulo nojento. Tal qual uma Fénix, Sherryl emergia não completamente humana mas também não se podendo dizer que passara deste plano pois estava ali em frente de todos. Ao mesmo tempo, a essência do Corvo alçava voo envergando no seu dorso o lenço de seda vermelho como uma segunda pele. Tão alto voou que em segundos desaparecia para não mais se ver. A partir daquele momento, a irmandade tinha um novo líder tão ou mais poderoso que o anterior. Era assim há milénios e assim continuaria. A mulher corvo passara no ritual de transformação e era agora um ser mais perfeito e perfeitamente capaz de levar os objectivos da Deusa-Mãe a bom porto. Rudy encaminhou-se para junto de Sherryl e beijou-a na fronte ao mesmo tempo que lhe entregava um objecto vermelho igual àquele que o corvo levara na sua ascensão. Era uma passagem de testemunho. A partir daquele momento, Sherryl era responsável por tentar melhorar as relações entre o reino animal e o homem. Não eram pessoas à procura de um poder banal mas criaturas que entendiam o mais íntimo dos instintos humanos e animais. No reino animal, não havia hierarquias e todos os presentes o sabiam., já que eram obrigados a viver entre os dois mundos. Um a um, os presentes abandonavam o local deixando para trás os despojos de mais uma celebração à Deusa. Saíam com um sentimento não de saudade mas de dever cumprido. Sabiam ter de voltar. O Alce saía compassadamente enquanto a coruja piava vendo já a sua próxima refeição. A águia sentia-se de novo livre para cruzar os céus. O tigre e o urso saíram pensando nas crias que tinham deixado para trás e nas maneiras de as alimentar. Já caía a noite quando terminara a celebração. O lobo uivou à lua como que a anunciar e a agradecer o inicio de uma nova era. Este era o começo do reinado do corvo. Pelo menos até à próxima cerimónia.
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Rudy sentia a calma que rodeava aquele lugar como algo estranho. De alguma maneira, mexia-lhe com os nervos mas continuou teimosamente como que provando-se a si mesmo.
"-não há-de ser nada..." dizia a si mesmo como que apaziguando aquela sensação asfixiante.
As folhas de pinheiro caídas no chão quebravam e estalavam no chão mole aumentando o sentimento de solidão que se instalara no seu coração. Tantas vezes esperara por este momento que agora que ele se aproximava nem queria acreditar. Aquilo por que lutara quase toda a sua curta vida estava prestes a acontecer. A mensagem fora entregue e as suas condições aceites depois de viajar meio mundo. A escolha do local fora feita com muito cuidado de modo a não beneficiar nenhuma das partes envolvidas. De alguma maneira, ambas as partes pareciam decididas a acabar com o conflito que as opunha há já milénios. Estava tão envolvido nesta questão que não se lembrava de fazer outra coisa sentia-se cansado e por isso orava secretamente no seu íntimo desejando estar enganado quanto aos seus sentimentos. Sempre fora um homem de paz mas ser líder da família era o mesmo que gingar na corda bamba. Já nem se importava em contar as vezes que, contra os seus próprios sentimentos, levantara a sua voz contra aqueles que jurara proteger em favor de uma raça que sempre os caçara sem dó nem piedade. Estupidez ou não, sabia qual era o seu papel no meio desta equação e não estava disposto a que nada nem ninguém o impedissem de alcançar o seu grande objectivo.
Como líder dos infra-humanos desejava um dia poder fazer a paz entre o seu povo e os humanos. E cada vez que algo comprometia os seus esforços, ele sentia-se tal qual como agora ao entrar naquele local tão vazio de emoções como ele próprio. Conseguia então entender os momentos impetuosos de Steppen, seu amigo de longa data e confidente. Era cada vez mais difícil suster os acessos de raiva deste quando os homens teimavam em quebrar as tréguas impostas pelos tratados imemoriais. Compreendia-os apenas. Como emissário da deusa, não se podia dar ao luxo de ter outro tipo de reacção. Frieza era o único sentimento patente nas suas feições. Mas até ele, por vezes sentia essa raiva a aflorar-lhe à pele. Por isso nunca o condenava. Apenas o entendia...
Pensava em tudo isto enquanto o vento gelado da noite assobiava por entre as árvores daquela clareira fazendo com que aquela hora se tornasse ainda mais lúgubre aumentando também a sensação de que algo iria correr muito mal. Sabia no entanto não poder voltar atrás.
De repente, estacou. E riu... Baixinho...de si para si, sabia que ela o tentaria deter mas de alguma maneira não esperava vê-la ali no meio daquela situação.
"Basta menina" disse com toda a calma escondendo assim o nervosismo. " Sai das trevas e mostra-te. Já devias saber que não há nada que faças ou digas que me faça voltar atrás."
De repente, vinda do nada, uma ventania súbita provocou um remoinho que afastou as folhas que atapetavam a terra vermelha que guarnecia o local. Um pio tenebroso revelou por fim a figura para quem o rapaz estava a falar. Uma gralha negra como breu apareceu mesmo na sua frente piscando e olhando. Olhando e piscando... Incessantemente...
"Se queres que te diga, meu amor... Prefiro muito mais a tua forma humana... Sem dúvida...bbbbrrr..."
De seguida, aplicou um suave beijo no bico pontiagudo do bicho que neste momento se encontrava já empoleirado no seu braço. Como que mostrando obediência às palavras do seu amante, o animal dava lentamente lugar a uma bela mulher de cabelos cor ruivos cor de cobre que lhe adornavam o alto da cabeça. A pele branca como a neve e os olhos rasgados davam à personagem um ar misterioso quase que rivalizando em estranheza com a ave que segundos antes ocupava o lugar onde agora se encontrava. Em tudo isto, Rudy não se mostrou surpreso. Apenas acostumado...
"Parabéns linda... Sempre soubeste fazer uma entrada em grande" disse batendo palmas como que a troçar e divertindo-se com a situação.
"Não há dúvida de que isto é tudo um jogo para ti, não é?" perguntou ela irritada mostrando assim ao rapaz o quanto esta situação a desagradava. Ele conseguia sentir o desespero de Sherryll quase como se fosse seu. Conhecia-a bem demais e por isso decidiu tentar aligeirar a situação. Ou pelo menos tentou. Viu de imediato que essa estratégia não era a melhor. Ao levantar o queixo da amada, notou que dos seus olhos brotava livremente um rio de água. E ele sabia o significado dessas lágrimas. Ela amava-o. O simples facto de ali estar provava-o. No entanto, sentia-se impotente pois nada havia a ser feito para alterar a situação. Fosse qual fosse o resultado daquela noite, tinha de ir em frente e ela sabia-o… Era este o seu cargo e no fundo o seu destino. Um pouco em choque, fez a única coisa que se lembrou para confortar a sua parceira. Lentamente, encostou a cabeça dela ao seu peito na esperança de que o conforto deste a pudesse acalmar. Ao mesmo tempo, silenciosa e secretamente chorava ele também. As palavras que lhe saíram da sua boca demonstravam outra coisa completamente diferente. Bebia o sofrimento dela com angústia e por isso sucumbiu à tentação de a confortar mentindo. Lentamente mas com voz de comando disse: "-deixa-te de dramas Sherryll...sabes o que está aqui em jogo..." e continuou..."-fomos criados desde o ventre para este momento e agora que estamos tão perto, não o podemos desperdiçar. Por favor, tenta entender... "-Desperdiçar o momento?" respondeu ela indignada. "-qual momento? Aquele em que tu te transformas num mártir? De poderes ser um exemplo para a causa?
A cada palavra dela, o seu coração parecia querer rebentar pois entendia o seu ponto de vista. Bem demais para seu gosto. Deixou-a continuar enquanto lhe afagava o cabelo cor de fogo:
"-Não podes fazer isto. Demorei montes de tempo a encontrar-te e agora vou perder-te. Não é justo. Não é justo..." Ao mesmo tempo que falava, os punhos da rapariga socavam o peito dele.
"- Minha pequenita egoísta...não achas que estás a pensar apenas numa pessoa só? Ou seja tu?" e riu discretamente aliviando ainda que por alguns momentos a situação já de si tensa.
"-Tu só pensas na tua maldita causa. Eu...eu..." e, de repente, caiu num pranto que lhe permitiu apenas balbuciar as últimas palavras atabalhoadamente. As palavras seguintes foram mesmo as mais difíceis de ouvir:
"- maldito sejas...maldita seja a tua causa..."
"-calma leoa..nada vai acontecer. Vais ver... Tenho a minha fé de que tudo vai correr como planeado. Algum dia isto vai ter um fim. Porque não haverá de ser agora?" Ela parecia já saber o que ele ia dizer. A resposta veio numa velocidade surpreendente:"- o Rafael também tinha fé nessas palavras e acabou empalado numa parede qualquer deixando-nos apenas com as suas recordações. Muito justo não achas? Isto já para não falar do Vang e do Irik... Todos mortos e torturados para defender a causa. Não basta já de morte e sofrimento? Até hoje, o Irik não consegue pronunciar uma palavra de jeito quanto mais manter uma conversa decente.. Os homens são maus Rudy... Quando é que te vais convencer disso?
"-Sherryll... Sherryll..." respondeu-lhe da melhor maneira que pôde sem notar que estava a ser condescente nas suas palavras:"- Diz-me uma coisa. Considerarias o Steppen uma má pessoa? A resposta veio hesitante:"- não mas...". "- Pois... E no entanto, a única coisa que ouves sair da boca dele são pragas e asneirada sobre as mil e uma maneiras de acabar com a raça humana de uma vez por todas. Ouve bem isto que te vou dizer... E pausou ligeiramente antes de continuar..."-Em tudo o que se faz, corremos o risco de generalizar e aí somos nós que corremos o risco de errar e ainda pior…damos por nós a ser piores do que os nossos inimigos. Temos de tentar fazer a paz Sher. Sempre fazer a paz. Vai funcionar? Sei lá… Mas uma coisa eu sei… tentei e dei o meu melhor. Temos a obrigação de olhar para o lado risonho da vida não é? E riu…não uma gargalhada forçada mas uma que se sentiu sair do seu coração e da sua alma. Ao mesmo tempo, Sherryll repetia a mesma frase quase em uníssono. Ela sabia exactamente o que lhe ia na alma e aquilo que ele lhe estava a querer dizer. Ela juntou a sua gargalhada à dele como se estivessem a ver uma comédia no conforto do sítio ao qual chamavam casa. Quase como por milagre, o ambiente pesado desvaneceu-se permitindo, pelo menos naquele momento desfrutarem da companhia um do outro.
O momento de descanso terminou tão depressa como tinha começado já que quase imediatamente, Rudy assumiu a sua cara de comando habitual de um líder, dizia ele, e enfrentou a sua amada cara a cara. Sabia que neste caso era a única coisa que podia fazer para tentar trazer Sherryll à realidade sob pena de perder a batalha contra ela ficando a meio caminho do seu objectivo.
“-Ouve miúda. Eu amo-te e tu sabes disso. Talvez até mais do que a mim próprio E talvez também por isso tenho de fazer isto As almas de todos os nossos antepassados reclamam por justiça, é verdade mas também pelo bem que todos procuram e que nos é tão precioso A paz… Creio por isso, ser o único meio para tentarmos resolver isto mesmo que isso signifique arriscar a minha vida. Sabes bem o que diz alguma coisa que te li aqui há alguns anos “ temos de tentar fazer a paz antes de partirmos para a guerra”
“-Na verdade” interrompeu ela em tom animado “-Sun Tzu disse que em tempos de paz temos de nos preparar para a guerra e não isso que estás a querer dizer…eh eh eh…”
Com estas palavras, Rudy sentiu-se melhor. A sua querida estava mais relaxada e ele captava as suas emoções com sofreguidão. ela fungou enquanto ele continuava no que parecia ser um sermão:
"-como te disse, sei que posso não sair daqui vivo... Mas tenho de tentar...já não aguento mais ver os nossos irmãos dizimados.".
sem aviso, abriu a camisa que lhe cobria o corpo que ela tanto adorava. Sabia o que vinha a seguir. Mesmo perante a morte, ele não resistia a fazer teatro. Era uma das coisas que mais gostava nele. Conseguia manter a sua pureza e inocência mesmo perante o maior perigo.
o seu tronco desnudo revelou um sinal de carne vermelha de sangue perto do seu mamilo esquerdo. Era já conhecido de Sherryll. Na verdade, ela também o tinha já que era característico da sua raça...
"-maldição...esse sinal não é mais do que uma maldição para nós. não fora isso, podíamos viver nessa paz que tu tanto apregoas... Somos ensinados que isto faz-nos superiores mas honestamente não creio em nada disso...". as suas palavras saíram já num estertor já perto da histeria e ele queria acabar já com a conversa antes que as coisas piorassem.
Rudy e Sherryll faziam parte de um povo ao qual a humanidade em geral chamavam os infra-humanos. Pessoas tal como eles mas com uma diferença fundamental. Tinham a capacidade única de se transformarem nos mais variados animais. Partilhavam também com estes as suas características, habilidades e sentimentos. Ninguém sabia de onde eles vinham. Só que existiam. A co-habitação com os humanos era incentivada. Embora se soubesse que era um risco, tentavam sempre parecer iguais. E assim foi durante várias gerações de ambas as raças. Chegou no entanto uma altura em que, não se sabendo o porquê, os humanos começaram a ser capazes de os detectar. Aí começaram todos os problemas. Esses mesmos humanos decidiram então começar a dar caca indiscriminada a qualquer animal sob o pretexto de manter "aquela corja longe dos seus filhos e filhas". A reacção da parte dos infra também não foi muito diferente. Ao ver a sua espécie em perigo passaram ao ataque criando assim uma guerra que se estende até aos dias de hoje. Por isso, Rudy acolheu a mensagem dos seus algozes com desconfiança mas ao mesmo tempo cheio de esperança que este seja o derradeiro esforço para conseguir a tão desejada paz. Ele, melhor do que ninguém conhecia o significado das palavras exclusão e ostracismo. Não desejava nada disso para as gerações futuras e por isso mesmo sentindo-se caminhar para a morte tal cordeiro que se sacrifica perante o lobo, estava calmo como uma manhã de verão. Sabia o que implicava este gesto mas via-o como precursor de uma nova aurora. Por isso ali estava. Não na sua forma majestosa de alce na qual se sentia verdadeiramente ele próprio mas na forma humana para que pudessem sentir que ele estava ali de boa fé.
Rudy era um animal preso numa casca humana. Ou assim o pensava. A bem da verdade sentia-se bem melhor na sua forma de alce. Pelo menos assim podia percorrer toda a imensidão da floresta no seu passo que tinha tanto de majestoso como pachorrento. Queria sentir as folhas a roçar pelas suas hastes e a terra por entre os cascos duros como pedra. Só de pensar nisso, tinha saudades. Saudades do tempo em que não tinha responsabilidade e o mundo era ainda tão inocente como ele. Agora essa mesma responsabilidade esmagava-o. Por vezes sentia-se pequeno demais para atender a tanta coisa. Mas... Fazia sempre o seu melhor. Isso não havia como negar. Por isso estava ali. Não conseguia explicar isso a Sherryll. De alguma maneira, ela conseguia sempre levar a melhor nas conversas entre os dois. Ele sentia que isso era o que estava a acontecer naquele preciso momento e não podia deixar isso acontecer.
. Num choro compulsivo, agarrou-o impossibilitando-o sequer de mover. A libertação veio a muito custo.
"- Sher...pára...pára por favor. Não compliques ainda mais as coisas. A situação já não é fácil. E ainda tenho de me preocupar contigo. Tenho de fazer isto. Lutar por todos. Por ti, por mim por aqueles que ainda virão. Por favor tenta perceber..."
"- Não... Por favor... Não..."
disse a rapariga já em histeria tapando-lhe o caminho
"- não te posso deixar entrar ali. Não consigo perder-te. É horrível."
"-Vai-te…"
ordenou ele com a sua voz forte e inflexível dando-lhe as costas. À medida que se afastava dela, rematou dizendo:
"-vai pára casa e espera notícias minhas. E, por favor, faças o que fizeres, não voltes atrás. Por favor..."
Estas últimas palavras já traziam lágrimas nos olhos que felizmente Sher não viu. Apesar de saber o risco que corria, tinha de tentar. Fazia parte da sua maneira de ser tentar até à exaustão. Nesse sentido, ela era um estorvo. Dava tudo para que ela não estivesse ali.
"-ao menos deixa-me assistir. Sabes que o posso fazer sem levantar suspeita."
Ele fez de conta que não a ouviu. Sabia que o que ela estava a dizer era verdade. Na sua forma de gralha, ela era virtualmente indetectável. Como espia, não havia melhor. Todas as missões que requeressem descrição, eram-lhe confiadas. Incapaz de negar essa sua aptidão, não foi capaz de lhe negar esse pedido. Mais uma vez parou a sua marcha e voltando-se pára ela disse-lhe:
" pronto. Está bem. Mas tens de me prometer que vais honrar o meu pedido. Seja qual for o resultado, não vais voltar atrás nem tentar salvar-me. Estou em boas mãos."
Notou que ela não gostou muito destas últimas palavras mas também não lhe dera outra hipótese. E assim, pelo menos, ele sabia que ela estava a salvo. Neste momento, ele voltou atrás e agarrou-a suavemente pelos braços encarando-a. Colocando um dedo por debaixo do queixo dela levou a sua boca de encontro à dela. Um beijo meigo selou aquela conversa. Deuses. Ele queria que aquele momento durasse para sempre. Toda a vida lhe passou pela cabeça. A vida com ela era tudo o que se lembrava de significativo. Sem dúvida este era um momento especial.
"-amo-te" ouviu-se em uníssono.
Uma gargalhada pura saiu de ambos. Mais de uma vez experimentara esta situação. Os dois como um. Não havia diferença. Era isso que tornava a sua amada tão especial. Amava-a profundamente. Mais uma vez. Virou-lhe as costas sabendo porém que desta vez não voltaria atrás por nada. As lágrimas reapareceram. Não chegou a vê-la de joelhos com a cabeça virada pára o chão. Ela, tal como ele, voltara a chorar. Pareciam nem dar conta do vento cortante que de repente se fez sentir. Ele a correr... Ela prostrada no meio da folhagem dourada caída no chão. Não chegou a ouvir uma prece desesperada que saía da boca da mulher.
"- Por favor, deuses...por favor... Façam com que ele volte a casa. São e salvo. Para mim e para o nosso filho. Por favor..."
o vento continuava a cortar assobiando em todas as direcções quando a porta do casebre se fechou à sua entrada.
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O ar daquele local era horrível. Sentia-o e quase instantaneamente arrependeu-se da escolha que havia feito. O fumo do tabaco retardado adensava ainda mais a sensação opressora e fazia-o sentir-se tonto. A ponto de quase desmaiar. Era uma casa pequena por fora mas surpreendentemente grande no seu interior. Mesmo no centro, havia uma mesa de madeira e uns quatro ou cinco personagens que pela sua atitude estariam ali apenas pára proteger a figura central que se encontrava sentada à mesa. Pelo menos, a primeira parte estava cumprida. O medo fora rechaçado. Agora a segunda parte revelava-se ainda mais complicada do que a primeira. Já não podia voltar atrás e sabia disso. Só o facto de estar rodeado por aquelas bestas lhe dava náuseas. E o pior é que pareciam estar à espera de algo que Rudy ainda não entendera. Tinha a leve sensação de que ele fazia parte desses planos. De uma maneira muito cruel...
Do lado de fora, Sher continuava a piscar. Piscar e observar...observar e piscar...
Na cabana, tudo corria mal a Rudy. Rapidamente percebeu que caíra numa armadilha. Teve tempo apenas para se transformar no animal e com uma marrada, acertar em cheio no estômago de um dos seus algozes que, morto esvaía-se em sangue transformando o chão de madeira castanha numa espécie de piscina carmesim. Mas de repente, um dos homens que guardavam o líder do bando aproximou-se sorrateiro e desferiu um golpe certeiro na garganta do animal que lhe cortou a jugular. ... Em desvantagem numérica e com um ferimento de tal gravidade, Rudy não teve qualquer hipótese. Sabia que iria morrer. Lentamente, fechou os olhos e orou. Pediu por todos aqueles que protegera na vida e pediu para que pudesse continuar a cuidar deles na morte. Num ápice lembrou-se das lições da sua mãe. Ela dissera-lhe que os mais nobres lutadores se encontrariam todos um dia na fortaleza das almas. Nesse instante, o seu pensamento voou até Sherryll. Um fogo-fátuo saiu do seu corpo e ele estava morto. Jazia agora no chão da cabana onde por entre risos e gargalhadas, os seus inimigos exultavam com a vitória obtida naquele momento. De repente, algo súbito...todos os sons vindos do exterior se calaram. Pássaros que anunciavam a sua presença silenciaram os seus cânticos enquanto as folhas e árvores ficaram quietas. Parecia que alguém enlutara pela morte de um filho seu e exigira silêncio em sinal de respeito. De repente, vindo do nada, um relâmpago investiu contra a cabana onde ainda há pouco Rudy entrara. Fez com que o telhado da casa se despedaçasse e atingiu mortalmente um dos seus carrascos. Com olhos de medo, todos os outros fugiram como se estivessem a ser perseguidos pelo próprio demónio. Quando os relâmpagos pararam, uma chuva torrencial abateu-se sobre o local exacto onde o animal agora jazia lavando o soalho e a própria casa como que querendo apagar os vestígios da carnificina que testemunhara. A cabeça de Rudy que lhe fora separada do corpo naquela selvajaria, rolou desamparada até se atolar em meio a terra e lama. Esta era um misto de homem e animal pois o golpe de misericórdia tinha-lhe sido desferido aquando de uma tentativa de transformação em humano. A gralha continuava atenta e, quando viu que os humanos fugiam, aproximou-se. Lentamente, também ela se transformou numa mulher. Linda e elegante, chorava ao frio e à chuva e ao vento o ser que aquela cabeça representava. O corpo há muito desaparecera mas Sherryll havia de ter o seu homem sempre junto a si. Com maior dificuldade que supunha, pegou no emblema macabro e dirigiu-se pára casa. Sabia que eles ainda andavam por ali e por isso teria de ter cuidado. De repente, passos... Sem pensar, reassumiu a forma da gralha e pegou na cabeça. Lembrou-se de que pensou que esta seria bem mais pesada. Com aquele embrulho macabro e com sangue no rosto, afastou-se daquele lugar desejando nunca mais ter de lá voltar.
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E agora foi a minha vez. A minha vez de sonhar um sonho. Mesmo arrepiante. Pergunto-me se os sonhos têm de ser sempre assim, cheios de stress e adrenalina. De qualquer maneira marcou-me tanto que ainda não consigo deixar de pensar no raio do sonho. Para mim foi mais um pesadelo…foi o que foi…
Nele estava a vir para casa através da linha de mato que era o meu caminho habitual… Ao longe ouvia o barulho de uma qualquer jornada feita pelos invasores e via-me encurralada. Havia que ter muito cuidado. Eles andavam à procura de algo…isso eu tinha a certeza…a companhia aproximava-se pachorrenta mas resoluta. Já a via a desfazer a curva. Corri para não ser apanhada de surpresa. Vi então aquilo que me arrepiou. No meio da gravilha um pássaro. Um pássaro de porte médio completamente estraçalhado mas ainda vivo. Reparei que abanava a pequena cabeça freneticamente e que o seu bico amarelo estava tão maltratado que parecia dividido em dois. Esse bico contrastava vivamente contra a plumagem negra de noite do resto do seu corpo e por isso se distinguia bem os movimentos da sua cabeça. Cada vez mais irregulares e erráticos davam a entender que o animal pouco tempo de vida teria. Só me perguntava sobre o motivo de ele estar assim. Chegada perto dele, debrucei-me numa atitude de ajuda e lá descobri o motivo de tamanha selvajaria. Agarradas às suas penas, vinha um tufo de papel minúsculo. Este pássaro era um correio e alguém deve ter feito do seu melhor para que ele não chegasse ao destino. Descobri então ser um melro, ave muito comum na área ocupada pelos invasores hereges, esses romanos. Era tão bonito que me deu vontade de acariciar as suas penas desfeitas. À medida que assim fiz notei que lágrimas rebeldes escorriam pela minha face. Fiquei em choque.
O ar estava húmido e o nevoeiro abundava o que me deu uma sensação de segurança. Fiquei bem mais aliviada. Estava como me sentia…sozinha…depois de ver aquele pássaro, a sensação de vazio adensou-se dentro de mim. Fiquei perdida por deambular sem sentido. Perdi o norte e assim fiquei com o tufo de papel ainda por abrir entre os meus dedos. Ao fim de algum tempo, algo me disse para seguir em frente. Assim fiz sem olhar para trás. Ouvia no entanto, ao longe o som dos abutres que se aproximavam da agora ave morta para satisfazer a sua fome macabra. Ao fim de algum tempo, cheguei a casa onde sem reflectir, dei um forte abraço ao meu filho querido. Encostei-o ao meu peito e senti-me, agora sim, verdadeiramente segura. Ao adormecer, senti que uma asa passou pelo meu sono com uma atitude de agradecimento. Estava em casa e ali eu sabia que havia salvação.
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“-Por aqui minha querida…ui ui …cuidado aí com o junco…ainda te magoas.” A voz cansada mas vigorosa não parava de dar indicações sobre onde pôr os pés e onde ter cuidado para não haver surpresas. Ele devia saber que eu estava com medo e que de alguma maneira, sem aquelas indicações eu estaria perdida pondo assim em risco toda a sua jornada e isso era algo que ele não poderia nem conceber. Dissera-me horas antes para me convencer a acompanha-lo que do sucesso daquela caminhada dependia todo o destino de uma nação. Ainda por cima arrastávamos os pés por entre lamaçais e poças de agua fétida. Não raras vezes senti o desejo de vomitar, mas fui aguentando…
“-mas que lugar é este? Deuses me abençoem…” pensava Sherryll perdia que ia nos seus pensamentos. Não sabia o que pensar e por isso a sua mente vagueou dali para fora. Zito sempre fora, para ela pelo menos, uma figura paternal em quem sempre confiara quer nos bons quer nos maus momentos… no entanto, neste momento esse pai que sempre fora para ela parecia ter-se diluído numa personagem que dir-se-ia ter vindo dos contos e fábulas de outrora difícil para ela de reconhecer. Agora entendia que ele era para além de tudo o sacerdote da Deusa e que por isso tinha de desempenhar o seu papel.
“-Zito…por favor…espera…” disse em voz baixa, tentando não perturbar o silencio que entretanto se impunha e se mostrava ensurdecedor…
“-Minha querida…não te preocupes…está tudo bem” disse o velho num tom apologético.
“-Percebo que estejas apreensiva. Também já passei por isso. Mas tens de ter paciência. Só assim poderás compreender tudo o que se está a passar aqui. Acalma-te por favor.”
Com estas palavras Zito esperava dar apoio e alento à sua companheira de viagem. Sabia que ela hesitara em vir com ele e que apenas o fizera dado ter sido ele a pedir-lhe o favor.
Nas suas vestes cerimoniais, ele parecia ainda mais solene do que o costume e isso assustava Sherryll. Quando ela nasceu já Zito era velho e respeitado. Lembrava-se de como ia ter com ele em busca de auxílio e conselho e nunca saía frustrada de perto dele. Isso de alguma maneira deixava-a segura para aquilo que pudesse passar-se.
Hoje também não era excepção. Era verdade que não sabia o que se estava a passar mas não tinha dúvidas de que ele nunca a iria por em perigo. Nesta noite, que era tudo menos normal, ela seguira-o sem pestanejar. Ainda assim queria correr, fugir…
“-Mestre por favor…preciso de respostas…” disse num gemido suplicante…
O velho como que já habituado a estas frases virou-se para trás num tom apologético e disse-lhe agarrando-lhe os ombros num modo gentil:
“-Tens a certeza de que precisas assim tanto de respostas tendo tu já as respostas no teu coração? Sabes bem que nunca te traria para um local onde estarias em perigo…”
“-anda…vamos lá a despachar…daqui a pouco a nossa jornada terá sido em vão.”
Por mais apreensiva que pudesse estar, as palavras dele fizeram-na acalmar e de pronto, seguiu-o.
De repente, o seu coração saltou. Do meio do nada, e ao longe, começou a ouvir o piar e os ruídos característicos dos pássaros e das aves e dos répteis que, imaginava ela, deviam popular aquele sítio. Lembrava-se de ter pensado que esse era o sinal de que em breve o dia despontaria. Sinal também de que aquilo que Zito lhe dissera era verdade. Teriam de se apressar. Sem aviso, Zito estugou o passo deixando-a para trás. Ela precisou apressar-se se o quis acompanhar….
“-Mestre…espere…espere…” disse já com dificuldade de manter o seu belo vestido em condições….
“-Não há tempo para isso menina…temos mesmo de nos despachar. Está na hora.”
De facto, um pouco mais à frente estacou como que contemplando algo que, por alguma razão, Sherryll ainda não vira.
Respeitosamente, fez uma vénia e encetou os seus chamamentos ocultos. Encontrava-se assim quando Sherryll chegou ao local agora de culto. Era estranho ver o seu mestre ali naquela poça de água lamacenta como se ali fosse o templo mais reverente do mundo.
Realmente havia algo de especial naquele ser tão pequeno mas ao mesmo tempo tão grande. Ao vê-lo assim ajoelhado, sentia-o como o maior dos seres à face da terra…
De repente, algo a fez quase gritar mas uma mão invisível fê-la calar-se mesmo a tempo já que este era um ritual sagrado que necessitava de toda a concentração.
Mesmo no centro de onde estava Zito, começou então a vislumbrar uma luz que se elevava e começava a formar um padrão. Reconheceu a forma do triskelle mas de alguma maneira a sua forma mudava e já não era o símbolo que via mas sim um pentagrama ou um círculo arcano. Dir-se-ia enlouquecer tal era a miríade de cores que a assolavam. Em breve, não era apenas as formas que a fascinavam mas de repente, sentiu mais do que isso.
De repente, um fumo denso começou a elevar-se do solo. Estranho… este fumo parecia-lhe diferente….era perfumado e tinha cor…
De repente, estas névoas começaram a adquirir forma…como que por magia, davam agora lugar a silhuetas recortadas no horizonte. Estranho…parecia a Sherryll que eram de animais…
Não eram animais comuns isso conseguia perceber. Só mais tarde entendeu que aquelas eram manifestações das personagens que estudara em criança…que conhecera em escritos antigos e que agora estavam ali muito longe do que a sua mente tinha imaginado.
A primeira figura que ela conseguiu distinguir foi a do cão. Ela nem queria acreditar. Ali estava Zevi, a principal figura das suas histórias e líder da guerra contra os opressores. Cansado de se submeter às ordens dos humanos, liderou a revolução e tornou-se um mártir quando foi capturado e linchado em praça pública.
A névoa continuou a mudar como que querendo mostrar à mulher todo o esplendor das visões de antigamente. Rila foi a próxima. A Senhora dos Ares mostrava toda a sua majestade com a pose altiva de sempre. No seu tempo, servira como conselheira de Zevi. Adorava planar no are sobrevoar todo o terreno enquanto sentia todo a brisa escaldante. Mais uma vez, lembra-se de ler que traiçoeiramente foi apanhada e torturada pelo fogo para que servisse de exemplo a todos os que desejavam seguir o caminho da rebelião. O representante do elemento Terra não se fez esperar muito depois desta visão. Kobrami tinha uma forma viperina e odiosa mas a sua bravura e valentia granjearam-lhe um lugar à direita do seu líder. Como seu general de guerra, foi responsável foi responsável por muitas façanhas que o reino animal conseguiu em prol da causa…
Quando apanhado, teve destino similar aos dos seus camaradas de armas….linchamento e exposição em praça publica. A sua cabeça empalada ainda hoje adorna os aposentos dos líderes das hostes humanas.
Por último, Sher viu Gogol, o ser marinho que comandava as tropas vindas do mar. As suas feições eram semelhantes a um golfinho e ainda hoje não se sabe o que lhe aconteceu. Diz-se que terá sido apanhado por caçadores furtivos e vendido no mercado negro.
Era um espectáculo que não era fácil de entender. Sherryll estava confusa. Só conseguia pensar em como tudo aquilo era possível. Não estava a conseguir comportar toda a informação que estava a receber…seres míticos, supostamente mortos há centenas, senão milhares de anos, ali à sua frente parecia-lhe uma impossibilidade e no entanto ali estavam eles.